O que significa ser valdense hoje. Paulo Ricca responde

Lili Popper, sem respingos

Roma (NEV), 13 de março de 2024 – O que significa ser valdense hoje? Por ocasião do 850º aniversário do nascimento do movimento valdense, questionámos vários expoentes desta comunidade, pedindo-lhes que explicassem esta pertença de uma forma simples, concisa, com as suas próprias palavras. Jovens e idosos, vindos de todas as regiões da Itália, pastores e teólogos, ou mesmo cidadãos “simples”. Aqui estão as respostas.

O protagonista do primeiro “episódio” é o teólogo Paulo Ricca (abaixo, um resumo. No final da página, a transcrição completa).


Em primeiro lugar, significa pertencer a uma história. Se não fosse por essa história eu não poderia contá-la. O facto de os valdenses ainda existirem é um milagre absoluto, por muitas razões, não apenas políticas.

Em segundo lugar, ser valdense para mim significa tentar tornar-se cristão, porque o movimento valdense nasceu de uma conversão, que envolve iniciar uma viagem.

O terceiro significado é que neste caminho houve uma escolha irrevogável, que é a escolha da Reforma. Para mim, ser valdense significa ser protestante. Num horizonte ecuménico mas protestante.

Ser ecuménico significa curar-se do sectarismo que ameaça todos os grupos humanos e todos os grupos cristãos de qualquer tipo, mas também superar a ilusão de ser o único cristão no mundo.

Ser valdense não é algo fechado; é algo aberto. Qualquer um pode ser valdense. A história que nos precede está feita, você não pode mudá-la, você pode interpretá-la e lê-la de uma forma ou de outra, mas a história valdense de amanhã é aquela que você também faz quando entra nesta comunidade e se torna seu pequeno protagonista. Cada um, à sua maneira, pode dar a sua contribuição e tornar esta história diferente porque – repito – estamos em fluxo.

Tornar-se valdense hoje é possível e, na verdade, desejável. Como? Conhecendo e possivelmente amando essa história, que é uma linda história de resistência, de paciência, de sofrimento, mas também de algumas vitórias. Não é a única no mundo, mas é uma história que se coloca numa perspectiva de movimento em direção ao futuro, até mesmo de transcendência. Um pertencimento que ultrapassa as fronteiras deste mundo.

Paulo Ricca



Transcrição completa


Ser Valdense antes de tudo, significa pertencer a uma história em virtude da qual posso chamar-me ou dizer que sou valdense. Se não fosse por essa história eu não poderia contá-la.

É uma história muito particular, como sabemos, uma história milagrosa – pode-se dizer, pelo menos eu a considero assim – porque que os valdenses ainda existam é um milagre absoluto, por muitas razões, não apenas políticas, claro.

Uma história de mais de oito séculos, vivida em condições adversas, entre ameaças, armadilhas, violência de todos os tipos, perseguições físicas e jurídicas, discriminação, exílio, guetização. Tudo foi tentado por poderosos inimigos para destruir esta pequena comunidade dissidente que desde a Idade Média ousou constituir uma comunidade cristã diferente da dominante, pagando um preço de sangue muito elevado para permanecer fiel à sua vocação; É graças a esta cadeia de testemunhas que posso existir como valdense.

Os valdenses tiveram de desaparecer, pois todos os movimentos religiosos semelhantes não assumidos pela Igreja Católica desapareceram. Além de Francisco de Assis, que a certa altura se normalizou e se tornou o que não queria ser, levando mais tarde ao nascimento de uma ordem monástica, integrada no sistema católico. Os outros desapareceram todos, todos destruídos. Pensemos, claro, nos cátaros, que eram também uma verdadeira outra igreja, uma verdadeira igreja alternativa à romana, à existente. A história valdense é uma história absolutamente extraordinária. É difícil compreender a sua sobrevivência senão em virtude desta fé. É a única explicação razoável. Uma fé que também está, é preciso admitir, ligada a um território, dentro de certos limites. Sem os vales, os valdenses provavelmente teriam sido extintos. Eles teriam permanecido protestantes, luteranos, reformados, mas como valdenses acredito que eles existem apenas porque existem os vales, que eram de fato o gueto, mas também o refúgio e, portanto, o local de sobrevivência dos valdenses. Infelizmente agora esse território é cada vez menos caracterizado pela presença valdense, por isso o futuro é muito incerto, não claramente delineado. Porém, até hoje, creio que podemos dizer que a sobrevivência dos valdenses – enquanto comunidade identificável com este nome, muito discutida entre outras coisas – está ligada a um território, aos vales valdenses. Um território agreste, ingrato, bom como esconderijo, mas difícil como lugar de sobrevivência, de subsistência, como lugar que dá pão.

Em segundo lugar, ser valdense para mim significa tentar tornar-me cristão, porque o movimento valdense nasceu de uma conversão.

A conversão deste misterioso Waldo, que a certa altura teve uma crise espiritual e sentiu que não poderia continuar a viver como vivia até aquele momento. Valdo revolucionou a sua vida, mas essa revolução inicial foi apenas o começo, porque você nunca deixa de se tornar cristão.

Como valdenses, não somos mais quem éramos e ainda não somos quem seremos, somos cristãos em formação. Porém, uma coisa unifica a história valdense: a Bíblia é a nossa bússola, a estrela polar que nos guia no mar agitado da história humana.

Valdo fez uma escolha radical de conversão, segundo os padrões daquele período histórico particular, em que o ideal cristão era antes de tudo a escolha da pobreza e a escolha da pregação, ou seja, a escolha de dedicar-se à mensagem cristã, no contexto de um povo analfabeto que dificilmente recebeu uma sólida educação religiosa cristã. Ele talvez fosse treinado na repetição de ritos, cerimônias, na repetição das frases da missa, mas a ciência das histórias bíblicas essencialmente não existia. A pregação era a vida dos santos, não a história bíblica do Antigo e do Novo Testamento. O que significa uma conversão? Significa que você percebe que ainda não é cristão e embarca em uma busca pelo que poderia significar ser cristão, mas mesmo essa conversão inicial foi apenas um começo. Depois houve outros, e esta é – creio eu – a verdadeira chave para compreender a história valdense: nunca se deixa de ser cristão, de se tornar cristão. Então já não somos quem éramos e ainda não somos quem seremos, este é o nó górdio a ser desatado. Portanto, ser valdense significa estar no caminho, em progresso, rumo a uma meta que é a de nos tornarmos cristãos.

O terceiro significado é que neste caminho houve uma escolha irrevogável, que é a escolha da Reforma. Para mim, ser valdense significa ser protestante. Num horizonte ecuménico mas protestante.

A escolha da Reforma foi outra etapa decisiva no caminho para se tornar cristão. Não há como voltar atrás, você só pode seguir em frente. Avançar para o século 21 significa situar, não superar, mas situar a Reforma. Situá-lo num contexto ecuménico. O que isso significa? Primeiro significa curar do sectarismo que ameaça todos os grupos humanos e todos os grupos cristãos de qualquer tipo. Pode haver seitas grandes, seitas pequenas, seitas minúsculas, mas o espírito sectário é universal e ameaça a todos.

Em 1532 aderimos à Reforma – uma escolha muito cara – da qual não há como voltar atrás. Procuramos ser cristãos de um certo tipo, a partir de uma certa experiência e conhecimento de Deus. O ecumenismo não é a superação do protestantismo, mas a sua contextualização. Estamos em andamento. Estamos nos tornando cristãos, a partir da Reforma em diante, e não a partir da Reforma para trás.

Você pode ser sectário mesmo sendo o maior grupo religioso do mundo, e ainda assim pode ser sectário. Em segundo lugar, estar num horizonte ecumênico significa superar a ilusão de ser o único cristão do mundo. A ideia, isto é, de que não existem outros cristãos exceto aqueles que são como você. Há também cristãos que não são como você e isto parece simples, mas não é. Significa perceber que o Cristianismo é uma religião jovem, tem 2.000 anos, mas é jovem porque tem uma grande capacidade de se renovar, de se desafiar, de se questionar. Algo que nem sempre se vê em outros horizontes religiosos contemporâneos. Até a Igreja Católica, através do Vaticano II, entrou efectivamente num processo de autocrítica. Inegavelmente, o próprio papado, que foi o ícone da irreformabilidade e da imobilidade, pergunta-se se não poderia ser algo diferente do que é. E mesmo na Federação das Igrejas Evangélicas há dúvidas sobre o que isso significa, de norte a sul, de leste a oeste. Portanto, o Cristianismo é milagrosamente capaz de refletir criticamente sobre si mesmo, de se colocar questões radicais e incómodas e esta é a sua sorte.

Ser valdense não é algo fechado; é algo aberto. Qualquer um pode ser valdense. A história que nos precede está feita, você não pode mudá-la, você pode interpretá-la e lê-la de uma forma ou de outra, mas a história valdense de amanhã é aquela que você também faz quando entra nesta comunidade e se torna seu pequeno protagonista. Cada um, à sua maneira, pode dar a sua contribuição e tornar esta história diferente porque – repito – estamos em fluxo.

Tornar-se valdense hoje é possível e, na verdade, desejável. Como? Conhecendo e possivelmente amando essa história, que é uma linda história de resistência, de paciência, de sofrimento, mas também de algumas vitórias. Não é a única no mundo, mas é uma história que se coloca numa perspectiva de movimento em direção ao futuro, até mesmo de transcendência. Um pertencimento que ultrapassa as fronteiras deste mundo.

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